“O que é um palhaço, equilibrista e malabarista, senão um ser utópico por natureza, que passa parte de sua vida se equilibrando em um arame, brigando com a gravidade e buscando as melhores inspirações para fazer o público sorrir?”. O questionamento do ator e artista circense Lucas Santarosa ganhou vida, interpretação e forma, preenchendo a cena online nesta segunda-feira (26), durante o Revolução Poética: Festival de Ideias. Sua performance “Devaneios” abriu o debate sobre o tema “A maior das utopias”.
Na sequência, o público on-line pôde acompanhar o debate com a participação da pesquisadora Manuela Salau Brasil, economista, doutora em sociologia e coordenadora técnica da IESol/UEPG (Incubadora de Empreendimentos Solidários da Universidade Estadual de Ponta Grossa/PR). Outros quatro debatedores participaram da atividade: a cientista política Marília Migliorini, o participante do projeto NAU, Pedro Augusto, o artista circense Lucas Santarosa e a mestre de cerimônias da noite, Viviane Mendonça, produtora executiva da MVM Movimentos Culturais e superintendente da Fundação do Livro e Leitura de Ribeirão Preto, que promove o evento.
A economista iniciou sua fala relatando como ocorreu sua aproximação com a utopia. Foi no trabalho em uma incubadora de empreendimentos e economia solidários. Depois de dois anos lidando com as ideologias do espaço, ela conta que resolveu voltar a estudar o tema. “Eu queria entender e investigar aquele fenômeno que estava vendo acontecer, porque antes eu lia sobre economia solidária e estava acompanhando experiências do tema. E eu queria entender porque esse tipo de economia motivava as pessoas”, comentou Manuela.
Antes de mergulhar no cerne da ideia, ela mantinha a impressão de que era o trabalho coletivo da economia solidária que chamava a atenção das pessoas. No decorrer da pesquisa, Manuela entendeu que o que atraía o público para experimentar este tipo de economia era a utopia. “As pessoas eram motivadas a experimentar, por uma utopia social”, afirmou.
Utopia x economia solidária
Duas ações já acontecem, na visão da palestrante, como um movimento social. Porém, a utopia vista nessa situação não se assemelha à ideia de algo intocável e bonito. “A utopia é revolucionária, transformadora, política, ação e movimento”, refletiu. Para contextualizar a sua afirmação, a pesquisadora citou o criador da palavra ‘utopia’, Thomas More, no livro “A Utopia”, de 1515. Na obra, dividida em dois capítulos, o autor critica a sociedade em que vive, a inglesa, e, na outra metade, descreve uma suposta ilha, perfeita, chamada de “Utopia”.
Após More inaugurar o termo literário, outros autores passaram a explorar o tema da “utopia” e descreveram um mundo ideal e perfeito. Deste modo, o termo é taxado como algo impossível. “A partir desse ponto vemos porque a utopia é sempre associada às ideias de impossibilidade, perfeição, fantasia, ingenuidade e bonito, mas irrealizável”, acrescentou Manuela.
Ela trouxe o pensamento de outro filósofo para o debate, o alemão Ernest Bloch, cuja teoria aponta para a existência de dois tipos de utopias: a impossível (abstrata) e a que pode ser realizada (concreta). “É importante frisar o ‘pode’, porque não temos uma garantia, não há uma receita de utopia. Não existe uma ilha perfeita como descreve More, mas há a vontade de mudar o mundo”, destacou a pesquisadora.
Economia solidária seria uma utopia? Abstrata ou concreta?
Para responder à questão, Manuela contextualizou o termo que tem sua origem com o reformista social Robert Owen. Ela colocou que seria um enfrentamento ao capitalismo, a partir do cooperativismo social. “A economia solidária não é uma coisa nova, criada no Brasil, ela é uma releitura de um movimento cooperativista do século XIX, iniciado por Owen”, relembra. O ideal passou por instabilidade ao longo da história, mas sem sumir totalmente. E, no final do século XX, voltou a ganhar destaque no Brasil. “A economia solidária é uma proposta anticapitalista”.
A palestrante revelou que, em território brasileiro há cerca de 20 mil empreendimentos solidários. Mas que eles não operam da mesma maneira e não respondem a um único estatuto. O que orienta este tipo de economia são os princípios que seguem. “São experiências que querem ser auto democráticas através da autogestão, ou seja, é você trabalhar em um empreendimento que é seu, mas não é só seu. É uma experiencia coletiva, onde todos definem o caminho da empresa”, explicou Manuela.
Segundo a palestrante, a economia solidária, diferente das utopias, já existe e está no agora. “Você já pode vivenciar, comprar um empreendimento, organizar e pegar crédito emprestado em um banco solidário. Mas, ela ainda tem um ‘ainda não’”, comenta. Para ela, esse ‘ainda não’ será concluído no decorrer da história, nada está garantido.
Abrindo espaço para o debate
A primeira a participar do debate foi a cientista política Marília Migliorini, que questionou Manuela se não teria como este tipo de economia deixar de ser um acontecimento pontual para se tornar algo duradouro. Como resposta, a pesquisadora disse que a ideia acaba sendo funcional ao sistema capitalista, uma vez que ele não quer resolver a crise momentânea. “Devemos nos perguntar se a economia solidária não é um tampão para o capitalismo? Ou seja, enquanto o capitalismo está em crise, vamos resgatar a economia solidária. E quando estiver melhor, a esquecemos?”, questionou Manuela.
Em seguida, Lucas Santarosa acrescentou que a utopia vem crescendo e que aumentaram também os números dos movimentos sociais nos últimos anos. Provavelmente sem usar o termo “utópico”, mas, ainda assim, acontecendo. “Eu não consigo ver a utopia, porque ela está acontecendo ao meu redor. O meio artístico tem muito disso. Há muitos movimentos e é a realidade. E, claro, a realidade é uma ilusão, vai depender da lupa que você olha para ela”, comentou o artista.
A pesquisadora explicou ainda que o que acaba sendo divulgado é o medo dessa possibilidade de futuro. “Nos dizem que não vale a pena perder tempo pensando no futuro, que ele está escrito, que é uma reprodução do presente e não vai ser muito diferente do que temos. É uma questão cultural. E é triste”, enfatizou.
Por fim, o jovem Pedro Augusto questionou a socióloga se a base da economia solidária é ter uma vida feliz e qual seria o tempo necessário para se alcançar esse objetivo. “Com esse tema ‘a maior das utopias’, eu fiquei pensando se não era a felicidade. É um conceito muito filosófico, assim como a utopia. Mas eu acho muito importante trazer esse conceito para a sociologia e para nossas vidas. Nos questionarmos se o que fazemos está contribuindo para a minha vida e para a minha coletividade ser mais feliz”, concluiu a palestrante.
A pesquisadora integrou o debate por meio de plataforma digital, enquanto os debatedores e a mestre de cerimônias estavam presencialmente no Instituto SEB – A Fábrica, seguindo todos os protocolos de saúde e segurança orientados pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e Secretaria Municipal da Saúde.
Revolução Poética
O “Revolução Poética – Festival de Ideias” foi contemplado pelo edital ProAc Expresso LAB 40/2020 criado através da Lei Aldir Blanc. Trata-se de um projeto realizado pelo Governo do Estado de São Paulo, por meio da Secretaria de Cultura e Economia Criativa, Instituto SEB e Fundação do Livro e Leitura de Ribeirão Preto.
O festival terá atividades até esta terça-feira (27/04), com a participação do poeta, escritor, professor e editor da Selin Trovoar, Ni Brisant, e com a Coletiva de Rua Sarau Disseminas, às 19h; em seguida ocorrerá o debate com o professor da Universidade de Nantes, Alfredo Pena-Vega. Já as 21h, Leser MC fará uma revolução poética, com a apresentação musical intitulada “Do lado de cá”. Logo após, a geógrafa e professora universitária Maria Adélia de Souza vai falar sobre o tema “Por uma outra globalização – entre utopias e distopias”.
Os interessados em participar da atividade podem acessar as redes sociais da Fundação do Livro e Leitura de Ribeirão Preto (Youtube e Facebook) ou a plataforma digital (http://www.fundacaodolivroeleiturarp.com/). As atividades são abertas e gratuitas ao público.